segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

As Minhas Previsões para 2013...


Não me comovo com a saída de um ano findo e a entrada de um ano que promete não mudar nada, nem ser novo. Como seria aliás de esperar, os anos, só por si, não mudam nada na nossa vida, o que muda a vida é a própria vida ou a influência que nós, os seres humanos, a natureza ou Deus, exercemos sobre ela no sentido de a levar a mudar, e isso acontece na maior  parte das vezes.

Havia, há anos atrás, um sujeito que se dizia astrólogo e que dava pelo nome artístico de Zandinga. Lembram-se, com toda a certeza os mais velhos, que este senhor tinha o condão de nunca acertar nas suas previsões de fim de ano e nas projecções para o ano seguinte, o que é normal, claro, e particularmente nas  que tinham a ver com as vitórias do seu clube do coração, o Sporting,  e que pretendiam sempre sagrar   o dito clube  campeão nacional. Como nada se concretizava, de acordo com as suas projecções, ele depois lá tinha que arranjar o "esfarrapado"  argumento de que as suas cores clubísticas tinham  afinal sido campeãs nesta ou naqueloutra  modalidade... Valia-lhe o ecletismo do Sporting nas várias modalidades desportivas ou escalões.

Acho que  Zandinga cometia um erro grave quando fazia previsões: não levava em conta  a regularidade da vida  nem  o facto de que nenhum ser humano consegue sequer prever, em bom rigor, o que acontecerá na hora seguinte da sua própria vida. Está dito e observado que "se continuarmos a fazer as mesmas coisas de sempre, da mesma maneira de sempre, obteremos os mesmo resultados de sempre".  A vida não muda apenas porque nós desejamos ou prevemos que ela mude. A vida, no que de nós depende, muda quando  temos vontade de que ela mude, e quando, associada a essa vontade intentamos alguma coisa para que ela mude, nem que seja um "golpe de asa" qualquer forçado por alguma circunstância adversa, aleatória ou razoavelmente calculada. É por tudo isto que eu, com muito mais certezas que  o dito Zandinga posso fazer algumas projecções para o que vai acontecer em Portugal no ano 2013, mesmo se acredito que os anos, ou a sua passagem, só por si, não mudam rigorosamente nada.

Vamos então a isso, às projecções e previsões para 2013:

1ª. O Porto ou o Benfica, um deles vai ser campeão nacional de futebol, nunca os dois ao mesmo tempo.

2ª.  O governo vai cair, ou não, no primeiro trimestre do ano, conforme a ambição política de Paulo Portas, no que às autárquicas diz respeito. Quererá também desresponsabilizar-se da actuação do governo de que faz parte e vestir de novo o fato de "Paulinho das Feiras".

3ª. Os portugueses da classe média, e os mais pobres,  vão continuar a ser confiscados por um Estado que perdeu toda a vergonha e pudor.

4ª. O presidente da república vai continuar a ser o pior presidente da república desde o 25 de Abril, mesmo tendo em conta Mário Soares.

5ª. O desemprego vai aumentar ainda mais em Portugal.

6ª. O partido socialista continuará no limbo da política portuguesa, sem conseguir distinguir entre a sua mão esquerda e direita, mas isso, claro, não é nenhuma previsão, é a realidade.

7ª. A economia vai afundar-se ainda mais nesta europa esfrangalhada, e consequentemente em Portugal.

8ª. A Alemanha continuará a mandar na europa, para mal da nossa vida, porque a europa, tal como está, serve perfeitamente os seus interesses económico-sociais.

9ª. A europa não questionará a hegemonia da Alemanha porque teme que, sem a Alemanha na europa, a economia europeia estilhaçar-se-á ainda mais e em muito maior escala.

10ª. A Inglaterra continuará a querer estar com um pé dentro e outro fora da europa. Afinal  é uma ilha, e assim continuará, salvo alguma catástrofe ditada pela mãe natureza que faça dela uma península.

11ª. A globalização continuará a arrasar com a Europa e os USA e a permitir a ascensão dos emergentes, especialmente China e Índia, o que não é mau para eles mas péssimo para nós.

12ª. A Grécia não irá sair do euro porque isso não convém à Alemanha.

13ª. Espanha, irá ser resgatada, mas o orgulho espanhol irá conseguir fazer com que não pareça que está a ser resgatada, o que sastifaz o enorme ego de nuestros hermanos.

14ª. Finalmente, Catalunha, País Basco, Escócia e Portugal, não alcançarão a desejada independência.

15ª. Deus e só Deus, continuará a ser o autor e Senhor da vida, e isto não é uma previsão, é uma certeza absoluta. É por isso que eu sei que, nas suas mãos, estou seguro e a salvo de todas as surpresas de pandoras humanas.


De resto, como diria Raul Solnado, "façam o favor de serem felizes" no ano novo, qualquer que ele seja.


Jacinto Lourenço




quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Tempo não é o Verbo...




 Prestes a submeter-me ao balanço torpe do ponteiro dos segundos que me obrigará a uma  viagem no futuro de mais um ano civil, na voragem duma página de calendário , constato que calendários e relógios, continuam a não ser meus amigos, mas pelas razões opostas às da minha infância, adolescência e juventude. Hoje, preferia que eles não se desdobrassem com tanto afinco e pressurosamente nas suas tarefas e que não me galopassem tão avidamente na pista dos anos. É que chegar ao "final" não é, para mim, uma questão de vida ou de morte, até porque o tempo é um valor etéreo, a eternidade e o céu, o firmamento e as estrelas, continuam a ser meus. Não tiro  o chapéu ao tempo com que este ano nos castigou, e não brindo ao que lá vem porque não o conheço e porque não faço do tempo um pequeno deus ou  um ditador implacável ou temível a quem deva oferendas para conseguir  só coisas boas e agradáveis. O tempo, afinal, não é um absoluto nem legado particular de ninguém, é antes um espaço onde a vida de todos se conjuga mediada por  entre dias e noites que se sucedem. No  pretérito, no presente ou no futuro, o tempo é apenas um espectador da passagem imperativa da vida. O tempo não é o Verbo. O tempo é o hiato entre o Alfa e o Omega, onde o Verbo se conjuga em nós.

Jacinto Lourenço  

domingo, 23 de dezembro de 2012

Passados Quatro Anos...


Quatro anos de dedicação a esta página, celebrados hoje, começam a traduzir uma persistência que nem sempre é conseguida noutras vertentes da vida.

Quando somos crianças  achamos sempre mais uma desculpa para acrescentar algum tempo à nossa idade pensando que, com esse artifício, exibimos  respeitabilidade proporcional a uma ou outra circunstância em que isso nos pareça necessário. Lembro-me, por exemplo, que quando andava pelos meus 15, 16 anos e queria ir ao cinema ( sim, nessa altura ainda só se viam filmes nas salas de cinema ) ver películas para maiores de 17, procurava sempre que o meu aspecto físico de adolescente estivesse mais  em linha com o  objectivo de passar pelo crivo perspicaz e implacável de quem regulava o acesso às salas  do grande écran. Umas vezes passava no controlo experimentado daquele quase torniquete humano que se impunha impante, outras não, e lá se iam os vinte e cinco tostões do bilhete... Mais tarde, já adultos, o que queremos é que o tempo não nos fustigue, ou pelo menos que a sua passagem seja branda  nas marcas que deixa. Dois paradigmas  que jamais conseguiremos reconciliar numa só vida: ser, a um tempo, mais velhos e mais novos, conforme o nosso desejo ou necessidade de ocasião. Mas se só temos uma vida ( pelo menos física ) para viver e não lhe poderemos retirar ou acrescentar tempo, pelo menos de forma planeada,  vivamo-la então o melhor que pudermos e soubermos. Sem pressas nem vagares, dando tempo ao tempo, cada coisa a seu tempo, como sempre ouvimos de antanho. Tem sido este o caminho que o Ab-Integro tem feito nestes quatro anos de vida.

Hoje o tempo continua a abrir umas portas e a fechar outras: por algumas queremos passar, por outras não e, por outras ainda, não nos deixam. Será sempre assim que a vida se há-de apresentar, para todos. Sempre a tomei por inteiro, a vida, e sempre  como ela se me apresentou, e as minhas opções pessoais são disso consequência, para o bem, para o bom, mas também para as coisas menos positivas com que por vezes me deparo. Interrogo-me  se poderia ter descrito  outra trajectória, sublimado os meus defeitos, melhorado as minhas virtudes ?  A resposta é sim e  não. Por um lado somos sempre resultado das nossas circunstâncias e das opções que tomamos face às mesmas, por outro lado há coisas que nunca conseguiremos mudar, fazem parte da nossa idiossincrasia, estão-nos nos genes e é um pouco também isso que faz do ser humano uma  criação perfeita e desafiadora. Somos, a um tempo, todos diferentes e todos iguais. Voltaire afirmou que "Deus concedeu-nos o dom de viver, compete-nos a nós viver bem" . O Ab-Integro é um pouco consequência desta perspectiva. Viver bem a vida de acordo com a visão daquele que no-la concedeu, sem peias, amarras ou receio de críticas de quem discorda de nós. Damo-nos, por inteiro, com toda a  frontalidade e lealdade à vida que recebemos dEle. Este blogue integra-se nesse propósito há quatro anos. A trajectória nem sempre tem sido calculada. Somos condicionados pela realidade que nos cerca e respondemos face a ela. Elogiamos, indignamo-nos, revoltamo-nos, sonhamos, temos derrotas e vitórias, batemo-nos pelo bem, pelos  bons, e por aquilo que é justo e de justiça. Como dizia Paulo, " combatemos o bom combate" em todas as frentes; afinal, ser cristão, é muito isso. Este Blogue vive dessa necessidade e premência. Nessa perspectiva só podemos desejar que, se alguma influência podermos  exercer, que ela seja só  positiva, e que se estenda a todos os que por aqui repousam o olhar, independendo de quem são, o que são e como pensam. Bem hajam por continuarem comigo. Obrigado pela companhia nesta caminhada de quatro anos. Feliz Natal. Bom ano novo, seja isso quando for na vida de cada um.

Jacinto Lourenço

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Quantos pobres são Necessários para se Produzir um Rico?



«E eu pergunto aos economistas, políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»

Almeida Garret

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A Poesia e as Sombras na Europa




Quando daqui a muitos anos alguém fizer a história da crise europeia, um dos registos que sobreviverá à erosão do tempo será o livro de poemas de Hélia Correia, A Terceira Miséria (Relógio D'Água, 2012). Os poetas dizem as coisas improváveis, mas essenciais. Conheci este livro pela mão de Maria de Sousa, uma cientista com quem o País contraiu uma dívida que jamais poderá saldar. Como tudo o que é fundamental, o verdadeiro conhecimento, seja científico ou poético, está para além da "esfera de transacções". Hélia Correia fala-nos da Grécia e da Alemanha. Do país onde amanheceu o Ocidente. E do país que, no último século, parece condenado à maldição de conduzir a Europa à sucessiva encenação do seu crepúsculo. A poetisa convoca Hölderlin, Nietzsche, a II Guerra Mundial, mas canta-nos sobretudo a espessa vitória do esquecimento sobre essa memória que é a nossa única linha de defesa contra a repetição da barbárie. Era contra o esquecimento que os cadetes de West Point aprendiam de cor a Ilíada de Homero. No gutural grego arcaico. Pois, a verdade da guerra não é estratégica, mas moral. Uma mistura de fúria, desmesura, piedade e coragem. Dentro de anos, talvez ninguém se lembre de um só dos nomes dos líderes que, embriagados por amnésia, conduzem a Europa para o colapso. Em janeiro de 1939, quando os políticos ainda festejavam a Paz de Munique, o poeta W. H. Auden escrevia: "No pesadelo da escuridão/ Todos os cães da Europa ladram/ E todas as nações vivas esperam/ Sequestradas no seu ódio." Em dezembro de 2012, esperamos, presos num labirinto de dívida, arrogância e medo. Sem saber se ainda haverá um fio de Ariadne que nos salve desse Minotauro, que deixámos irromper no lugar onde deveríamos proteger a esperança.


Viriato Soromenho Marques

in Diário de Notícias 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Do Quinto Império




Excerto de um sermão de Fr. Luís de Sá, pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, logo a 16 de Dezembro de 1640, um dia depois da aclamação de D. João IV como novo Rei de Portugal.

«Dizei-me, animosos Lusitanos, qual de nós duvidou nunca de que havíamos de vir a ter Rei natural, que restaurasse este Reino próprio, Império de Deus, depois daquela célebre promessa, que Jesus crucificado nosso Deus fez na noite antes da memoranda batalha de Ourique àquele raio da guerra, que ali jaz (*), sempre testemunha viva desta promessa, e verdade nunca morta, o nosso primeiro Afonso, e primeiro Rei deste Reino: volo in te (lhe disse o Senhor falando de rosto a rosto com ele) et in semine tuo imperium mihi stabilire: quero em ti, e em teus descendentes fundar um Império (não Reino só não) próprio para mim, e se este reino e império do Senhor havia de ter esta larga interpolação de sessenta anos em que o governou Castela, também a restituição dele ficou profetizada logo deste tempo, pelo ermitão santo, nosso Samuel Evangélico, que naquela mesma noite falou ao nosso Rei: vinces, et non vinceris: posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque in sextam decimam generationem in qua attenuabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit (**), quem depois destas palavras (que no próprio original se guardam no cartório do real mosteiro de Alcobaça, cabeça da minha religião Cisterciense nestes reinos) firmadas com a própria mão Real daquele Rei que ali vedes: duvidou nunca, que havíamos de ter Rei Português, que nos livrasse do jugo de Castela? Ninguém certo: é bem verdade, que para em tudo ser profecia, e figura David do nosso felicíssim Rei, assim como os Hebreus variavam nas palavras, assim nós éramos vários nos discursos, acerca da pessoa, e mais do tempo, sendo, porém, sempre entre nós tão caseira esta profecia de nossa Restauração que havia quem a não tivesse pela primeira verdade.»

in João Francisco Marques (org.), A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração. Quasi, 2007.
pp. 84-85 (emendei apenas os erros crassos no latim)


(*) Recordemos: o sermão foi pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, onde está o túmulo de D. Afonso Henriques, para onde provavelmente o pregador estaria mesmo a apontar.

(**) Vencerás e não serás vencido: na verdade [Deus] pôs sobre ti e sobre a tua descendência os olhos da sua misericórdia, até à décima sexta geração, na qual se atenuará a descendência, mas sobre ela, atenuada, ele deitará os olhos, e verá.

Fonte: Blogue Memento 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Fim de Um Mundo na Visão de José Mattoso


...Para os primeiros cristãos, esta exclamação ["Ora vem Senhor Jesus"] pressupunha que a segunda vinda de Jesus Cristo, depois da sua morte e ressurreição, estava já próxima. O que se pedia então não era um encontro espiritual com Jesus, mas a sua vinda efectiva, visível, como juiz supremo da humanidade, para separar os bons dos maus e instaurar no mundo o Reino de Deus. A sua vinda cósmica encerraria o tempo do mundo. Seria precedida ou acompanhada de acontecimentos catastróficos que abalariam todo o Universo e permitiriam o triunfo definitivo dos justos sobre os pecadores. O "Vem Senhor Jesus" não é, portanto, na sua origem, um chamamento místico, mas um clamor apocalíptico. É um grito de apelo, da parte de quem não receia o fim do mundo, antes o deseja ardentemente. Nesse contexto, o fim do mundo invoca-se, chama-se, se possível apressa-se, mesmo que traga o sofrimento e a morte, porque a situação que faz soltar esse grito se considera pior que tudo. Contém um sentimento de que a injustiça, a crueldade e a violência que invadiram o mundo inteiro são insuportáveis. Deseja-se que o tempo da iniquidade e do terror acabe de vez e para sempre.

Mas para os cristãos de há quarenta anos os pressupostos eram bem diferentes. Como recordam, decerto, os mais velhos aqui presentes, eram anos cheios de esperança ( os mais cépticos dirão: cheios de ilusões ). Muitos de nós julgávamos, com toda a sinceridade, que tínhamos chegado ao limiar de um mundo mais justo e mais fraterno. Esperávamos também, simbolicamente, os que éramos cristãos, a vinda próxima do Reino de Deus, mas queríamo-lo na terra, para nela instaurar uma era liberta da opressão e da injustiça. 

Começo as minhas considerações de hoje a dois momentos históricos tão distantes entre si - o do princípio da era cristã e o dos anos sessenta deste século - para mostrar que, na passagem do segundo para o terceiro milénio, em que hoje nos encontramos, se perderam as ilusões acerca da proximidade de um mundo melhor ou até de ele algum dia se poder implantar na terra. Hoje ninguém mais deseja a vinda do Reino de Deus. Perdemos a esperança. Não esperamos coisa alguma depois da catástrofe irreparável que parece aproximar-se da humanidade. Os cristãos construiram uma das religiões mais espalhadas sobre a terra. O seu sentimento optimista perante o fim do mundo resultava da convicção profunda de que os males da humanidade tinham conduzido os homens a uma perversidade tal que só podia provocar a intervenção divina para eliminar o mal e purificar a terra por meio da destruição. Mas depois viria o Reino de Deus. 

Depois das esperanças de liberdade, de justiça, de democracia, de vitória sobre a exploração do homem sobre o homem que nos animaram nos anos sessenta, e que nos nossos dias se dissiparam, voltou para muitos o sentimento da proximidade do fim dos tempos, mas não a esperança de um mundo melhor. Assiste-se a uma proliferação de catástrofes naturais e à dissolução dos fundamentos da sociedade. Não sabemos mais como restaurar a ordem e a segurança. Não desapareceu o espectro da bomba atómica que aterrorizou tanta gente depois da Segunda Guerra Mundial, e agravou-se a ameaça, a médio ou a longo prazo, de um imenso desastre ecológico. Penetram por toda a parte, até, por vezes, no nosso espaço doméstico, dois espectro não menos pavorosos - o da Sida e o da Toxicodepedência - com o seu cortejo de  miséria e humilhação. De consequências ainda mais vastas é o agravamento do fosso que separa os pobres dos ricos, por causa da globalização da economia e da irresponsabilidade da alta finança.  Afastou-se da nossa mente a imagem  do fim do mundo como destruição física da terra pelo fogo, mas vemos acumularem-se os riscos do caos social e do descontrolo global da natureza. [...] Não podemos imaginar nenhum milénio que arranque o poder discricionário aos senhores deste mundo, como pensavam outrora os milenaristas que punham nele as suas esperanças , porque sabemos pela TV e os jornais que o peso dos terramotos, tsunamis e tornados recai sobre os indefesos, os oprimidos, os excluídos e os pobres, e não sobre os ricos. O que desejamos é estar do lado destes e não daqueles. O que perguntamos é se podemos continuar a ter o nosso carro e os nossos electrodomésticos. O futuro milénio não traz a esperança, mas o medo de uma luta implacável por bens escassos ou mal repartidos: por agora o dinheiro; dentro em breve, provavelmente, a gasolina, a energia eléctrica, a água, o ar despoluído, os lugares menos ameaçados pelas cheias, a carne dos animais sem vírus, os legumes sem pesticidas, os alimentos conservados sem aditivos, as árvores poupadas pelos incêndios[...].

Tal como o Apocalipse de outrora, também este resulta , em última análise, de uma crise de valores. Pedimos a segurança garantida pela polícia, a qualidade dos produtos vigiada pelos inspectores económicos, a disciplina dos alunos nas escolas, mas esquecemos que o recurso à polícia, aos inspectores e aos professores resulta de se ter  generalizado o desprezo pelos valores fundamentais em que se baseia a ordem social e pelos ditames da consciência. As convicções morais são impotentes para combater os interesses das empresas destruidoras dos recursos naturais e os fabricantes de produtos industriais cuja nocividade ninguém pode controlar. Ninguém quer renunciar ao conforto e ao consumo. Nenhuma empresa que limitar os seus lucros[...]. Secularizada a moral, apela-se à ética e à cidadania, mas não se consegue restaurar o carácter absoluto dos ditames  da consciência que era garantido pelo carácter sagrado dos seus preceitos. Não falámos ainda da dissolução da família. Há um novo conceito de família, mas os antigos modelos não foram substituídos por novas células capazes de enquadrar adultos e crianças com a mesma eficácia que a família de outrora; da ausência de critérios morais na experimentação e utilização das novas tecnologias, nomeadamente na genética; do fim da moral sexual; do terrorismo urbano; da corrupção das ditaduras africanas; dos genocídios; da inoperância das deontologias profissionais; do uso alienante do marketing económico e político; das distorções do sistema educativo; da lentidão do sistema judicial; da fraude política e económica; da programação televisiva reduzida aos mais baixos patamares da vulgaridade. A lista é quase infindável.

O rosário das perversões tem, nos nossos dias, algo de peculiar por comparação com crises análogas de outros tempos. Nestas podia haver infracções generalizadas dos valores morais mas não a dúvida ou o desprezo pelos valores em si mesmos; houve lutas entre sistemas de valores opostos, mas não descrença na sua necessidade. Num mundo compartimentado, com poucos contactos entre povos e nações, as crises eram limitadas. Não há memória de uma crise universal. Mas a globalização não multiplicou a prosperidade. Propagou a violência implacável da oposição de interesses. Com ela, generalizou-se também o desprezo pelos códigos e referências morais socialmente aceites. Desaparecidas as doutrinas que as sustentavam, surgiu a dúvida acerca dos seus fundamentos. Quem fala, hoje, em bem, beleza, justiça, solidariedade, bem comum, autoridade, humanismo ? E se alguém fala de tais valores, quem se deixa persuadir por tais discursos ? Muito pelo contrário: julga-se que quem maios invoca esses ideais é quem menos acredita neles.

Prof. José Mattoso

Do livro Levantar o Céu - os Labirintos da Sabedoria, págs. 26-31, edição Círculo de Leitores.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012



...Hoje, a Europa divide-se entre fadiga e agonia. Há três razões que convergem para que a lucidez resvale para o lado menos luminoso. A primeira é o divórcio existente entre aquilo que as sociedades civis exigem e aquilo que os governos europeus oferecem. Os europeus pedem emprego, justiça social, combate à corrupção, melhor ambiente, proteção para o futuro dos seus filhos. Os governos nacionais europeus são incapazes, até, de construir a escala europeia onde essas políticas poderiam ser gizadas. Limitam-se a oferecer o rosário da austeridade e da recessão.[...]

Viriato Soromenho Marques in Diário de Notícias

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Lisboa vista por Roque Gameiro e Affonso Lopes Vieira



(Rua do Benformoso, Lisboa - finais séc. XIX )
Roque Gameiro


...Atroz Lisboa, sob o azul mais lindo!,..
Não cuida ela em nos ministrar os bons cómodos da higiene e cultura universais, comuns às capitais da Cristandade.
Deixa vadiar rebanhos famélicos de crianças e expor ao colo de mendigas profissionais — horror supremo! — os bebés moribundos, de sorte que as suas ruas são as mais dolorosas do mundo de Cristo. Ao passo que nos ratinha, somítica, a luz, o calor e a água, não aprende a resolver o problema, em toda a parte resolvido, de equilibrar o moderno com o arcaico, e de criar um tom de decorosa harmonia, com ritmo de unidade. Delira com pontes fabulosas e sonha com metropolitanos fantásticos. Não lhe dói, porém, que o seu mais formoso monte, altar sagrado de tradições desde a Conquista, continue encimado por um palácio que o abandono torna sinistro, por mais que os beijos do Poente em cada tarde redourem a carcassa do que devera ser coroa ou elmo. Acomete a camartelo as derradeiras muralhas e bastiões que a brasonavam, e enfeita-se, dia a dia, com as galas horrendas do relismo cosmopolita.
¿Que fêz Lisboa, nas últimas décadas — mas, sôbre-tudo, nos últimos anos, — da Baixa pombalina, esse bairro, monótono, sem dúvida, mas quanto nobre na proporção, na solidez, na côr e pitoresco dos prédios, cuja conservação e tons de pintura a ordenança municipal impunha aos donos? Sou dos que negam a Pombal, tão grotescamente consagrado pelos nossos democratas como deus da «Liberdade», o génio que oradores idiotas lhe decantam.
Mas a verdade é que o Marquês edificou, sobre os escombros do terremoto, ou nas clareiras que os tiros de peça foram abrindo, uma bela traça de capital, rompendo, com a Rua Augusta, a mais notável artéria urbana da Europa da sua época, e ao-pé do rasgo da qual os boulevards de Paris, construídos um século depois, não testemunham tal cunho de audácia.[...]

Affonso Lopes Vieira 

Prólogo do Auto da Lisboa Velha

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A Peste Negra


( O Triunfo da Morte, por Pieter Bruegel, o Velho ) 



A Peste Negra medieval não foi primeira pandemia de peste bubónica


Análise de ADN revela que a doença que dizimou a população europeia entre os séculos VI e VIII d.C. era de uma forma ancestral da peste bubónica.




Há muito que os historiadores suspeitavam de que a “praga de Justiniano” – uma doença altamente contagiosa que, entre os anos de 541 e 750 da nossa era, matou mais de metade da população europeia e contribuiu para a queda do Império Romano do Oriente – era, na realidade, a peste bubónica. Só que, até aqui, não existiam dados científicos que corroborassem esta hipótese. Nada permitia afirmar que a mortal doença se manifestara de forma pandémica na Europa antes da Idade Média, sendo portanto a Peste Negra – que matou mais de 100 milhões de pessoas entre 1347 e 1351 e de cujas consequências a Europa demorou 150 anos a recuperar – a deter o estatuto de primeira pandemia oficial de peste bubónica. Mas a partir de agora há provas concretas: uma equipa internacional de cientistas acaba de acrescentar um novo “ramo” à “árvore genealógica” genética da bactéria responsável pela peste bubónica, a Yersinia pestis. E a conclusão é a de que, afinal, terá efectivamente havido uma pandemia de peste bubónica vários séculos mais cedo, que terá começado quando o imperador Justiniano I ainda reinava em Constantinopla.[...]                    


Ler texto integral AQUI no jornal Público

domingo, 2 de dezembro de 2012



...O actual paradigma é da mercantilização das coisas e da vida, no quadro do primado do homo oeconomicus. Pergunta-se: mas será que tudo se reduz ao valor monetário e de mercado? E os valores éticos e os valores estéticos e os valores políticos e os valores afectivos e os valores religiosos?
Vinculado ao paradigma da mercantilização está o paradigma da liquefacção: vivemos na sociedade líquida, como teorizou Z. Bauman, desembocando numa existência efémera, na cultura ligt, descartável, do consumismo, na insatisfação permanente. As Humanidades, apelando à memória e aprofundando no pensamento crítico, salvaguardarão um mínimo de solidez, captando o peso do tempo na esperança da dignidade livre e da liberdade na dignidade de todos.

Anselmo Borges

in Diário de Notícias

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A Manivela...




O governo da liberdade ficou sendo a tirania das maiorias e, como a maioria é por via de regra ignara, nem a eleição dava o pensamento de povo inteligente, nem dava pensamento nenhum, por ser apenas a maquina movida por ambiciosos, o realejo que toca a mesma ária aclamadora  a todos os que lhe movem a manivela .

Oliveira Martins 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O Servilismo Está-nos no Sangue...


O problema é antigo, está-nos no sangue, parece-me. Dizem-nos que o herdámos do tempo do "botas" , que nos obrigou ao servilismo. Não acredito. A coisa vem mais de trás, do princípio da nossa história enquanto nação, com Egas Moniz a confundir honra com servilismo ( numa "interpretação" muito minha, e livre, da história...) quando foi pedir perdão e oferecer a sua vida e da sua família em resgate  a Afonso VII por D. Afonso Henriques se ter recusado a prestar vassalagem ao primo, conforme lhe prometera Egas Moniz, se este levantasse o cerco a Guimarães.  Sempre tivemos esta tendência para a servidão, para a obediência cega e parva, sem questionamentos. Somos assim; desenvolvemos, como nenhum outro povo da Ibéria,  a arte de "engolir sapos", mesmo se eles são de difícil digestão, e mostrar um sorriso,  por mais amarelo que seja.

Se vamos ao senhor doutor para tratar das maleitas que nos afligem, lá vem a promessa de, pela páscoa, lhe fazermos chegar um borreguinho ou um cabritinho desmamado, tenrinho, ainda a saber a leite, sim,  claro, porque  o médico nos vai aliviar das dores que carregamos. Os mais pobres podem sempre ofertar um queijinho ou um chouriço lá da terrinha. O físico, impante na sua cátedra inquestionável e impenetrável, a olhar-nos por cima dos óculos, diz que sim, que gosta e, na volta de uns comprimidos milagrosos, ou de umas gotas,  lá mais para a frente poderá seguir também para o consultório  um perú pelo natal. Ainda hoje, mesmo acedendo a um Serviço Nacional de Saúde que pagamos com impostos, não conseguimos deixar de olhar para o médico como alguém a venerar servilmente, em lugar de o vermos como profissional que é, pago para tratar da nossa saúde. A esta imagem, talvez mais diluída nos meios urbanos, juntam-se outras que têm a ver com o sacerdote católico, o pastor protestante,  o advogado, com o cabo da guarda, com o presidente da Câmara, etc, a quem dedicamos ridículos e servis  encómios numa atitude borrega, sem paralelo conhecido a não ser o da  nossa triste vocação para desistirmos com facilidade de exibir a dignidade que reside no simples facto de sermos seres humanos e cidadãos na  plenitude da igualdade de direitos e deveres que independe da posição social que ocupamos . Somos, quiçá, dos únicos países do mundo chamado desenvolvido a achar que títulos académicos fazem parte, ou devem  usar-se em lugar dos nomes de registo ou baptismo. Um país de doutores e engenheiros em que, mesmo aqueles que o não são exigem tratamento deferente como se o fossem. Doutor para aqui, doutor para ali, senhor engenheiro para isto senhor engenheiro para aquilo. É cultural, dizem-nos. Sim, até pode ser, mas não passa de uma cultura de penacho que assenta num servilismo a raiar a falta de coluna vertebral que se liga com a facilidade com que a vergamos por tudo e nada.

Clara Ferreira Alves constatava, numa das suas habituais e recentes crónicas no Expresso, que "outros países estão a conseguir atravessar a crise da dívida com a dignidade intacta" e só "Portugal resolveu transformar-se num país habitado por bonecos das Caldas". Dizia ainda  que "o nosso desejo de agradar, de servir, perde-nos. Faz-nos perder o respeito por nós próprios". Também, num outro registo, a mesma Clara Ferreira Alves, em reportagem sobre os estragos provocados pelo furacão Sandy, nos Estados Unidos da América, e para o mesmo semanário, constatava que os milionários de Manhattan, a deslizarem nos seus carros de luxo como se fossem os donos do planeta, não fazem a menor ideia de como vivem os pobres. "Usam-nos como serviçais, e proporcionam-lhes empregos com estatuto de invisibilidade. Os portugueses, uma comunidade em Newark, são famosos pela sua honestidade e por serem criados, governantes  e mulheres da limpeza de confiança. Gente que se pode meter dentro de casa. Simples, discretos, invisíveis. Sem nome nem história".

Também é certo, por aquilo que diz Clara Ferreira Alves, que pudemos, e devemos,  interpretar essa atitude dos trabalhadores portugueses nos E.U. da América, por exemplo, como francamente profissional: fazem o seu trabalho com correcção, executam as suas tarefas com profissionalismo e não se metem, mais do que devem, na vida dos outros, especialmente dos seus patrões. Mas também pode ser que o servilismo cultural dos portugueses os ajude a isso tudo.

Quando Portugal esteve sob dominação espanhola, esta cultura de servilismo era levada ao extremo para com a corte Filipina: relata-nos a História de Portugal coordenada por José Mattoso, no volume 5.3,  que "na corte de Filipe III [de Portugal], em Valladolid, os Castelhanos zombavam da soberba e vaidade dos portugueses: «não cuida um fidalgo português se não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar, com os seus lacaios mais rica e custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o fizeram nas suas vodas". Claro que o objectivo destes fidalgotes que se deslocavam a Valladolid,  emproados, empoados e seguidos pelo seu séquito de serviçais, era essencialmente  o de bajular o rei  e assim conseguir prebendas e favores políticos. Verificamos que, afinal, o servilismo é transversal na sociedade portuguesa e já vem de antanho.

O que sabemos hoje é que dignidade não rima com servilismo e que este não deve ser confundido com capacidade de realização e disponibilidade para correcção no nosso relacionamento com tudo e com todos.

Jacinto Lourenço



sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Crime em Alexandria...


...Houve uma época no mundo antigo - há muito tempo - na qual o principal problema cultural terá sido uma inesgotável abundância de livros. Onde os pôr a todos ? Como os organizar em prateleiras sobrecarregadas ? Como podia cada um assimilar a profusão de conhecimentos ? A perda desta plenitude teria sido praticamente inconcebível para quem vivesse no meio dos livros.

Então, não abruptamente, mas com a força acumulada de uma extinção em massa, toda a actividade terminou. O que parecia estável revelou-se frágil, e o que parecia durar para sempre servia apenas para o presente. Os escribas devem ter sido os primeiros a notar: cada vez tinham menos que fazer. A maior parte do trabalho de cópia parou. A chuva, lenta, pingando sobre os buracos dos telhados decadentes, apagou as letras dos livros que as chamas pouparam, e as traças, essas "presas do tempo", carcomeram o que sobrara. Mas as traças são apenas os agentes menores do "Grande Desaparecimento". Outras forças movimentavam-se para acelerar o desaparecimento dos livros e o desmoronamento das próprias prateleiras, transformando-as em pó e cinzas [...]

Stephen Greenblatt

in A Grande Mudança, pág. 83 , edição  Clube do Autor 

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Ler para Chegar ao Paraíso






Um jovem via que um velho consagrava todas as horas da sua vida à leitura.
Lia sem cessar, dia e noite, e quando lhe perguntavam a razão dessa perseverança, ele respondia:
- Leio para um dia chegar ao paraíso.
Anos mais tarde, depois de o velho ter morrido, o jovem, ele próprio já maduro, iniciou uma grande viagem em busca da verdade. Como era costumeiro neste tipo de viagens, passou por duras penas, por regiões estéreis e espinhosas. Encontrou gatunos de muitas espécies, monstros, precipícios, enigmas e tentações.
Tão forte era o seu desejo de verdade que pôde transpor todos os obstáculos e chegar enfim, mesmo no cimo de uma montanha, a uma gruta onde o esperava a revelação suprema.
Entrou e, com alguma surpresa, encontrou nessa gruta o velho cuja reputação terrena, entretanto, tinha atingido o próprio grau de santidade.
Ora, na gruta o ancião continuava a ler. O outro aproximou-se respeitosamente e perguntou-lhe:
- Então o paraíso é aqui?
- É aqui.
- E continuas a ler?
- Continuo.
Então passaste toda a tua vida terrena a ler para chegares ao paraíso e, realizado o teu voto, continuas a ler?
- Como vês.
Então não lias só por ler?
- Sim – Disse então o velho –. Mas aqui compreendo, finalmente, o que leio e ainda é mais maravilhoso!

Fonte: Pó dos Livros

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Todos Descendemos de Pissarro...





(Camille Pissarro - As Lavadeiras)


António Gabriel Pissarro. Pelos anos de 1747, na cidade de Bragança impunha-se uma florescente e laboriosa geração de cristãos-novos. Do ponto de vista da economia, nunca como então crescera o fabrico e o comércio das sedas, com a Rua Direita transformada em um autêntico formigueiro de micro e, pequenas unidades industriais, extraordinariamente competitivas e geradoras de riqueza. No seio dessa comunidade, brilhou a estrela de António Gabriel Pissarro. A ponto de um seu contemporâneo ter proferido o seguinte testemunho:
- Acorriam a ele como a pai!
Nascido em 1716, era filho de Pedro Álvares Pissarro e Luzia Nunes, que ambos conheceram as prisões do santo ofício, sendo ele acusado de ser dogmatista e rabi. Em Bragança fez António os estudos preparatórios no colégio dos Jesuítas, posto o que ingressou na universidade de Coimbra onde se licenciou em direito. Regressado a Bragança, abriu um escritório de advogado, assim iniciando uma brilhante carreira.
Na terra, havia mais de uma dúzia de advogados e padres formados em cânones, que nesses tempos existia uma ligação muito grande entre as varas judiciais eclesiásticas e civis. E uma grande parte desses profissionais juntou-se na promoção de um processo perante o juiz de fora da cidade, visando impedir o dr. António Pissarro de exercer a sua profissão nos tribunais da comarca, baseados em argumentos de natureza ética. Parece que o instigador dessa demanda e da campanha de contestação ao dr. Pissarro foi o padre/advogado António Carlos Vilas Boas que tinha sido seu colega na universidade de Coimbra e em Bragança conseguiu o estratégico emprego de notário do fisco e do santo ofício, por ele passando o registo de todas as penhoras e confiscos de bens aos processados pela inquisição. Se bem que perdessem o processo no juízo de Bragança, os inimigos de Pissarro recorreram para a Relação do Porto, onde voltaram a perder e foram condenados a pagar as custas. E a aura do nosso advogado mais cresceu, medrando em paralelo as invejas e os ódios recalcados. E fatal seria que acabasse preso pela inquisição, acusado não apenas de práticas judaicas mas ainda de ser, tal como o pai, entretanto falecido, o rabi da sinagoga que os “judeus” de Bragança faziam em casa de António Rodrigues Gabriel, seu parente.
Não vamos aqui falar do seu processo. Apenas diremos que foram dois longos anos de sofrimento. E uma nota interessante: em sua defesa, acorreu o comissário da inquisição de Bragança, padre Morais Antas, que fez uma informação para Coimbra falando das invejas do padre Vilas Boas e outros e que a acusação partia apenas do facto de o dr. Pissarro ser de origem hebreia e não de qualquer infracção às leis da igreja.
Finalmente, refira-se que na família deste ilustre advogado de Bragança viria a nascer, em 1831, em St. Tomas, uma das Antilhas, um dos maiores pintores do século XIX, aquele a quem Henry Matisse chamava o “Moisés da pintura contemporânea” e acerca de quem Paul Cézanne dizia:
- Todos descendemos de Pissarro!
Estamos falando, naturalmente, de Camille Pizarro, o famoso mestre do impressionismo que faleceu em Paris em 1903.

António Júlio Andrade

in Por Terras de Sefarad

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Sabujo...




O discurso de Passos Coelho, pretendidamente de boas-vindas a Angela Merkel, ultrapassou a indispensável cortesia para se transformar numa inqualificável sabujice. A alemã esteve seis horas em Lisboa apenas para apoiar e aplaudir a política do primeiro-ministro português. Afinal, a sua política. E aquele perdeu completamente o mais escasso decoro e o mais esmaecido pudor. Qualquer compatriota bem formado sentiu um estremecimento de vergonha ante o comportamento de um homem, esquecido ou indiferente à circunstância de, mal ou bem, ali representar um país e um povo.
A submissão a Angela Merkel e ao sistema de poder que ela representa atingiram o máximo da abjecção quando Passos estabeleceu paralelismos comparativos entre trabalhadores alemães e portugueses, minimizando estes últimos, e classificando aqueles de exemplares. A verdade, porém, é que as coisas não se passam rigorosamente como ele disse. Os portugueses trabalham mais horas, recebem muito menos salário, descansam menos tempo, dispõem de menores regalias e de cada vez mais reduzida segurança.[...]

Baptista Bastos 

in Diário de Notícias Online

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Europa Derrotada no Circo de Berlim...





...A Europa voltou à lógica da balança do poder, e a Alemanha recupera, sem pudor, um lugar de hegemonia. Já não através do ferro e do fogo, mas pelo controlo de uma União Económica e Monetária, que se transformou numa máquina de terror e de pobreza social. Tal como os generais romanos vencedores, que desfilavam cobertos de troféus e prisioneiros, Angela Merkel percorrerá a capital do Tejo cercada de um séquito obediente e servil. Mas no carro de vitória da chanceler alemã, ao contrário do que era costume com os generais romanos, não haverá nenhuma voz, sábia e prudente, murmurando-lhe ao ouvido que "toda a glória é efémera".

Viriato Soromenho Marques 

in Diário de Notícias online

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Livros para Gente que Não Gosta de Ler...




Quando me fazem uma das perguntas mais frequentes numa livraria: «queria um livro para alguém que não gosta de ler», imediatamente penso que é o equivalente a pedirem-me uma cerveja sem álcool, um café sem cafeína ou um cigarro electrónico sem nicotina, isto é, um livro sem enredo, sem personagens, sem sentimentos, sem emoções, sem ideias. O pior é que se abre uma multiplicidade de hipóteses das quais não posso fugir, os livros editados para pessoas que não gostam de ler são, paradoxalmente, a maior fatia da oferta que existe no mercado. Basta passear um pouco por uma grande superfície e verificar a grande quantidade de livros iguais no seu aspecto estético e temático, para perceber que essa é a lei que impera. Não quero parecer elitista ao criticar a opção de se ler esse tipo de livros, é legitimo fazê-lo. Mas sejam quais forem os prazeres de desfrutar de um livro, enquanto objecto que nos permite levitar para outro mundo, esta não pode ser a única abordagem da leitura. Um livro pode, de facto, mudar a nossa vida. Não é o trabalho de um escritor uma espécie de instrumento óptico que é oferecido ao leitor para lhe possibilitar encontrar aquilo que, sem a ajuda do livro, nunca teria conseguido sentir sozinho? Não será um livro a descoberta do eu através dos outros? Já Marcel Proust dizia que é sempre mais interessante citar os outros do que nos citarmos a nós próprios. Para Orhan Pamuk um livro, para além do seu enredo e das personagens, tem que ter uma ideia central, aquilo a que Pamuk chama o centro do livro ou desígnio do livro. A função de um livro não é apenas a de nos dar prazer, ou seja, um analgésico, de efeito efémero, que ajuda a minimizar a solidão ou a passar o tempo enquanto viajamos de autocarro ou de comboio; pode, pelo contrário, criar-nos angústia, medo e dúvida, mas também nos pode dar respostas. Porém, parece que a maioria das pessoas quer apenas um sucedâneo, um placebo, algo que simplesmente as distraia e seja inócuo. É uma opção.

Jaime Bulhosa 

in O Pó dos Livros

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os Judeus em Sefarad



...A palavra, o topónimo Sefarad, surge em Abdias, no versículo 20, e veio a ter grande impacto na cultura judaica, pelo menos até ao século XIX. Vejamos o contexto das palavras do profeta:



“Os deportados deste exército,
Os filhos de Israel
Ocuparão as terras dos cananeus até Serepta
Os deportados de Jerusalém
Que estão em Sefarad
Possuirão as cidades de Négueb.”



Abdias, um dos chamados Profetas Menores, pelo escasso tamanho do seu texto, 21 versículos apenas, deve ter escrito depois de 586 a.C., isto é, posteriormente à destruição de Jerusalém, na época de Nabucodonosor.
Desde muito cedo, não sabemos quando, esta realidade designada por “Sefarad” foi identificada com a Península Ibérica. Não podemos saber desde quando, de facto, existiram judeus no território peninsular, mas podemos dizer, com certo grau de verosimilhança, que isso terá acontecido muito cedo, logicamente antes do domínio  romano, aquando da grande expansão comercial dos fenícios.
Mas mais que "Sefarad", a palavra "Hispânia" também nos pode revelar alguns aspectos interessantes. De facto, a palavra pode ter origem semita, de cariz fortemente comercial, podendo ter designado “ilha/costa do Norte” ou “ilha/costa dos metais”.
O Périplo de Hanão, escrito no século V a.C., é uma das fontes mais ricas e mais interessantes para a análise da capacidade de navegação, mobilidade e domínio dos mares por parte dos Fenícios, cultura bastante semelhante e geograficamente contígua ao espaço tradicionalmente atribuído a Israel. Neste contexto, que trata uma viagem fenícia para além das Colunas de Hércules, vemos como seria a navegação para o Atlântico.
Contudo, arqueologicamente, pouco podemos dizer sobre essa antiguidade. Mas temos indicadores que nos falam bem alto. O Antigo Testamento fala-nos de uma sociedade significativamente ligada ao comércio, com as características essenciais de uma sociedade fundada na economia de troca. Assim encontramos nos alvores do mundo dos reinos de Judá e de Israel , nomeadamente no que respeita a todo o tempo dos patriarcas, todo o mundo de semi-nomadismo, as famílias de Abraão, Isaac e Jacob, mas também de José e a sua célebre venda como escravo para o Egipto.
Esses tempos, mergulhados na incerteza das datações, mas remetidos para meados do segundo milénio antes de Cristo, levam-nos a um mundo em tudo diferente do urbano. Um espaço largo, onde as pastagens dimensionavam o horizonte, e onde a troca de víveres era a base da economia fechada de cada grupo humano, de cada família alargada, de cada tribo. Não será por acaso que a organização em tribos se manteve até tarde no imaginário de Israel.
No fundo, e esta generalização quase se pode fazer para todo o mundo semita, Israel tem na sua base identitária, que lhe formulou radicalmente tanto a religião como a sociedade, uma estrutura seminómada onde o elemento tribal e de caravaneirismo é fulcral. De que se podem fazer valer os grupos familiares que pastam o seu gado de pastagem em pastagem, senão vender parte dele de tempos a tempos?
Este horizonte familiar mas, ao mesmo tempo, difuso no espaço, nunca mais o judaísmo o iria perder. No que respeita ao primeiro aspecto, a malha familiar será sempre base de organização dos negócios, sempre de matriz familiar, mesmo quando internacionais. No que respeita ao segundo aspecto, a forma difusa de organização e confinação no espaço, será a própria história a fazer prevalecer este sobre os outros aspectos.
Realmente, desde tempos muito recuados que os judeus trilharam caminhos de fuga, de desvio, de êxodo e de exílio. Desde, pelo menos, os séculos IX/VIII a.C. que comunidades de proto-judeus devem ter acompanhado os fenícios no estabelecimento e desenvolvimento de linhas comerciais com toda a bacia do mediterrâneo, incluindo a Península Ibérica. Desde essa data, mas com especial desenvolvimento desde as conquistas de Alexandre, e depois com o domínio intolerante dos Antíocos, que se espalharam comunidades organizadas de judeus no Norte do Egipto, na Grécia, nas costas da Península Itálica, na Ibéria, podendo mesmo ter chegado ao Vale do Indo, criando hoje uma milenar forma de estar no mundo fundada nessa mesma dispersão das comunidades.
O que fora uma terrível perda de ligação efectiva ao centro do mundo religioso, ao Templo de Jerusalém, foi desde cedo compensado pela criação de laços inter-comunais. Há mais de dois mil anos, um judeu que se lançasse num qualquer negócio, poderia ter a quase certeza de, em qualquer metrópole mediterrânea, encontrar um parceiro, também ele judeu, com quem tratar. Desde esses assentamentos fenícios que os hebreus chegaram ao território actualmente português.[...]

Paulo Mendes Pinto

Em Grandes Enigmas da História de Portugal, Vol. I – da pré-história ao século XV, da Editora Ésquilo
Ler texto integral AQUI no Blogue Por Terras de Sefarad